Para melhor perceber o caso é preciso recuar um pouco e fazer um breve contexto cronológico. Nas legislativas de 18 de Abril de 2021, Amadeu Oliveira, conhecido advogado, alvo de vários processos judiciais, foi eleito deputado. Na altura, estava a ser julgado, na Praia, por crimes de ofensa à honra de juízes do Supremo Tribunal, num processo que ficou suspenso ao abrigo da imunidade parlamentar. Eleito na lista da UCID, o deputado integrou a Comissão Permanente, enquanto representante desse partido. A 12 de Julho, e na sequência de um pedido do Procurador-Geral da República (PGR), de 1 de Julho, a Comissão emitiu uma resolução (Resolução nº 3/X/2021, publicada no BO de 19 de Julho, série II) em que autorizou a “detenção fora de flagrante delito do Deputado Amadeu Fortes Oliveira, para apresentação a primeiro interrogatório judicial”. A resolução contou com o voto favorável do visado. Oliveira respondia a um crime de ofensa a pessoa colectiva e dois de atentado contra o Estado de Direito, pela fuga, a 27 de Junho, de Arlindo Teixeira, seu antigo cliente, que havia sido dado como culpado num caso de homicídio. O advogado já havia admitido publicamente ter preparado a fuga do seu constituinte, por considerar que este enfrentava um processo “fraudulento”.
A 18 de Julho, efectivava-se a detenção de Amadeu Oliveira, que no dia seguinte, foi entregue às instâncias judiciais para o primeiro interrogatório. Dois dias depois, foi decretada a sua prisão preventiva. Mais de um ano passado, a 29 de Julho de 2022, a Assembleia Nacional aprovou, por maioria, em voto secreto, a suspensão de mandato do deputado, pedida em três processos distintos pela Procuradoria-Geral da República, para o poder levar a julgamento.
A 29 de Agosto, no Tribunal da Relação de Barlavento, começa o julgamento, cujas sessões decorreram até 11 de Outubro. A 10 de Novembro foi conhecida a sentença: Amadeu Oliveira foi condenado a sete anos de prisão, pelos crimes de atentado contra o Estado de direito e um dos crimes de ofensa a pessoa colectiva de que estava acusado. A condenação implicou a perda do mandato na Assembleia Nacional (que estava suspenso).
O Pedido
Voltando atrás, cerca de dez meses depois de Amadeu Oliveira ser detido, a 5 de Maio de 2022, um grupo de 15 deputados das três forças políticas com assento Parlamentar (MpD, PAICV e UCID) entregou no Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização sucessiva abstracta da constitucionalidade e legalidade da Resolução da Comissão Permanente (CP) da Assembleia Nacional (a referida Resolução nº 3/X/2021), cuja decisão foi agora conhecida.
Os 15 deputados, número que constitui o quórum mínimo para apresentar requerimento ao Tribunal Constitucional, questionava se a Resolução “não terá violado as garantias fundamentais da «imunidade parlamentar»”. Segundo o grupo, “fora de flagrante delito, o Deputado só pode ser detido ou preso, independentemente de moldura penal, depois de o tribunal competente ter proferido despacho de pronúncia, quando o processo já estiver prestes a ir para o julgamento e nunca logo no início do processo como aconteceu”. Por esta razão, a Resolução seria inconstitucional.
Além disso, argumentavam, a CP não tem competência legal para suspender o mandato dos Deputados nos casos de procedimento criminal, pois segundo o Estatuto dos deputados, essa suspensão só seria legal mediante deliberação da Assembleia Nacional tomada por voto secreto, pela maioria absoluta dos Deputados em funções, e após parecer da CP. Os deputados evocavam ainda a Constituição da República (CRCV) que no seu artigo 148º, nº 1 estatui o período de funcionamento da Comissão Permanente, defendendo que a 12 de Julho a Assembleia Nacional ainda estaria em pleno funcionamento, na 1ª Sessão Legislativa da X Legislatura, que só terminaria no dia 31 desse mês.
Em suma, em causa estariam a violação do nº 1 do artigo 148º, nº 3, do artigo 170º da CRCV e nºs 2 e 3 do artigo 11º do Estatuto dos Deputados, elencaram.
Prática
Na passada sexta-feira foi, então, divulgado o Acórdão que dá resposta ao requerimento dos deputados (Acórdão N.º 17/2023). O primeiro ponto analisado, teve a ver com a evocada desconformidade da Resolução relativamente ao nº 1 do artigo 148º da CRCV, que define o período de funcionamento da Comissão.
“A Comissão Permanente funciona durante o período em que se encontrar dissolvida a Assembleia Nacional, nos intervalos das sessões legislativas e nos demais casos e termos previstos na Constituição”, diz o artigo. Ou seja, e como referido, a “sessão legislativa” ainda estava a decorrer, logo a Comissão não estaria em funcionamento, logo não teria poderes para tomar a decisão.
O juiz relator, Aristides Lima, salienta, neste ponto, que “na prática parlamentar de várias legislaturas a Comissão Permanente tem funcionado não só no intervalo das sessões legislativas, mas também no intervalo das reuniões plenárias”.
Tal prática, aparentemente contrária ao entendimento da Constituição, sustenta-se pelas competências dadas pela CRCV à CP para o funcionamento do Parlamento. Sustenta-se também, na própria evolução do funcionamento do Parlamento, que ao longo das legislaturas, passou a ter uma actividade mais intensa – a ser um Parlamento a tempo inteiro –, o que vem também exigir uma divisão mais racional de papéis dos “diversos órgãos da Assembleia Nacional”, para descongestionar a Plenária.
A prática tem sido, pois, que as competências da CP sejam exercidas mesmo no período normal de funcionamento da Assembleia Nacional (1 de Outubro a 31 de Julho).
No que toca à competência da CP quanto aos mandatos dos Deputados, o Acórdão lembra que ao longo desta e da anterior legislatura, a CP aprovou vários actos, “designadamente resoluções relativas ao levantamento de imunidades e à suspensão temporária de mandatos, matérias que a serem decididas sempre pelo Plenário poderiam impactar negativamente a funcionalidade do Plenário”.
Nesta X Legislatura, que ainda está em curso, para além do caso de Amadeu Oliveira, foram aprovadas 12 resoluções para 13 Deputados serem ouvidos na condição de testemunhas e um Deputado foi suspenso do mandato para prosseguimento do processo. Na IX legislatura foram aprovadas 19 resoluções para deputados serem ouvidos na condição de testemunhas ou de arguido, enumera.
E costumes
Prova-se, assim, que existe uma prática efectiva de a CP funcionar no intervalo das reuniões plenárias para exercer poderes em relação ao mandato dos Deputados. Porém, questiona-se se esta prática pode ser vista como um costume constitucional e se o costume constitucional “pode ter efeito derrogatório contra o sentido literal claro da norma do nº 1 do artigo 148º da Constituição.”
Direito costumeiro, recorda-se, é direito não escrito e não criado por um órgão do Estado, mas que é uma prática permanente e geral, reconhecida como norma jurídica vinculativa.
“Não é a primeira vez que este Tribunal se confronta com uma situação em que se convoca a questão do costume como fonte de direito”, evoca.
O tema, na verdade, suscitou já debate e reflexão. Se há consenso na aceitabilidade como fonte de direito de costumes em conformidade com as normas e princípios constitucionais, ou que as complementam, os que são incompatíveis suscitam reflexões diferentes. Uma das reflexões tem a ver com a definição de limites da aceitação destes costumes assente nos limites da revisão da CRCV. O relator cita, aqui, a declaração de voto de um caso antigo, do seu colega Juiz Conselheiro J. Pina Delgado, que defende a rejeição do costume quando este “atingir qualquer das matérias protegidas pela cláusula de limites materiais à revisão constitucional”, ou seja, matérias que não podem ser mudadas. “Em matéria de direitos, liberdades e garantias o desenvolvimento de normas costumeiras que levassem à compressão não só seriam inconstitucionais, como não podiam ser reconhecidos por este Tribunal…”, acrescentava, então, o juiz citado.
Depois desta incursão por casos antigos, destaca-se que o Tribunal reconhece, sim, a existência de um costume desde que haja, pois, “uma prática reiterada e a convicção da sua obrigatoriedade”.
Ora, tendo-se firmado uma prática reiterada da CP funcionar no intervalo das sessões plenárias e mesmo das reuniões plenárias (de que, aliás, falam o Regimento e o Regulamento) e sendo esta uma prática aceite pela generalidade dos envolvidos e juridicamente vinculativa, este é um costume que corresponde a um costume constitucional.
“Assim, a resolução n.º 3/X/2021, de 12 de Julho, da Comissão Permanente não é inconstitucional por ser conforme a norma costumeira constitucional”, lê-se no acórdão.
Neste quesito, lembra ainda o relator, a Resolução da CP em causa foi reapreciada pelo Plenário, mediante pedido de revogação apresentado pela UCID, a 11 de Fevereiro de 2022. O principal órgão do Parlamento votou pela sua confirmação: 32 deputados votaram contra a revogação, 11 a favor e 21 abstiveram-se.
Imunidade
Quanto à questão da imunidade, parece ter havido alguma confusão, por parte dos peticionários, no artigo a fiscalizar. Os deputados evocam o n.º 3 do artigo 170º, quando o pedido do PGR foi feito ao abrigo do nº 2 do artigo 170º, que determina que “nenhum Deputado pode ser detido ou preso preventivamente sem autorização da Assembleia Nacional, salvo em caso de flagrante delito por crime a que corresponda pena de prisão, cujo limite máximo seja superior a três anos”.
Quer isto dizer que não pode ser preso sem autorização, e “a contrario sensu, significa que ele pode ser detido ou preso preventivamente com autorização da Assembleia Nacional”.
Já a norma n.º 3, que é evocada no requerimento, refere-se a “fase processual bem distinta: aquela em que já tenha havido acusação e pronúncia, o que não era o caso”.
“Assim, pode-se concluir que a Resolução encontra base constitucional no nº 2 do artigo 170º da Constituição da República e não viola o disposto no nº 3 do mesmo artigo, que, de resto, nem sequer foi invocado pelo PGR ou pela CP”.
Estatuto
Saindo da questão da Constitucionalidade. Quanto à violação do Estatuto dos Deputados e do Regimento da Assembleia Nacional, que determinam que, no caso de ser movido procedimento criminal contra um Deputado, a suspensão do mandato é da competência da Plenária (o que tornaria a Resolução da CP ilegal), olhando o Estatuto em paralelo com o texto da CRCV, não é encontrada qualquer ilegalidade. O Acórdão lembra que na Resolução em causa não está a suspensão do mandato do deputado para que o processo prosseguisse para o julgamento (que foi decidida em Plenário a 29 de Julho de 2022), mas sim a autorização para a detenção ou prisão preventiva.
Expostas todas estas questões, os três Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional decidiram unanimemente não declarar a inconstitucionalidade e a ilegalidade da Resolução da Comissão Permanente da Assembleia Nacional nº 3/X/2021, de 12 de Julho de 2021.
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Reacções
UCID vai pedir “clarificações”
A UCID reagiu ao Acórdão, afirmando respeitar a decisão do Tribunal Constitucional, mas levantando dúvidas sobre os argumentos apresentados. Em conferência de imprensa realizada esta segunda-feira, 6, o deputado António Monteiro sublinhou que “o costume constitucional”, principal argumento do Tribunal na sua tomada de decisão, “não pode sobrepor-se à Constituição”. Nem o costume, nem qualquer outro texto legislativo ou norma. Assim, insiste que a decisão caberia à Plenária, e alerta para o facto de estamos perante uma situação inédita. “É a primeira vez na história democrática de Cabo Verde que se dá a detenção de um deputado fora do flagrante delito, o que, ao contrário dos casos em que a imunidade é levantada para efeitos de audição do Deputado como testemunha, põe em causa um direito fundamental: a liberdade”.
Segundo o parlamentar, os deputados da UCID irão entregar agora um requerimento ao Tribunal Constitucional para “clarificar as questões”.
MpD e PAICV dão caso por encerrado
O PAICV, através do seu líder parlamentar, disse em declarações à RCV que não vão recorrer da decisão do Tribunal Constitucional. Esta é a instância máxima e, portanto, não há nenhuma outra onde o possam fazer. A decisão dos juízes do TC foi unânime e, além disso, afirma João Baptista Pereira, as dúvidas que o PAICV tinha ficaram “dissipadas”.
Também para o MpD, que se pronunciou na TCV através de Paulo Veiga, a decisão do TC é final, será acatada e, portanto, o caso é dado como encerrado.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1110 de 8 de Março de 2023.