Dia Nacional dos Direitos Humanos: As conquistas e os desafios à dignidade das pessoas

PorJorge Montezinho,28 set 2019 8:38

Há datas que se juntam sem ser por acaso. É o que acontece com o Dia Nacional dos Direitos Humanos, este ano comemorado pela primeira vez em Cabo Verde. O dia escolhido, 25 de Setembro, é o mesmo que assinala a entrada em vigor da Constituição de 1992, quando os direitos humanos foram efectivamente integrados na Lei Magna do país.

“O princípio da defesa dos valores da dignidade humana surgem com a Constituição de 92”, diz ao Expresso das Ilhas Janine Lélis, Ministra da Justiça, tutela que está a organizar a comemoração do Dia Nacional dos Direitos Humanos. “O ganho que se consegue com a Constituição de 92 é uma nova forma de orientação política, com uma verdadeira separação dos poderes, com um poder judicial autónomo e independente e normas a partir das quais se construiu todo o sistema que hoje temos. Daí a razão dessa opção do Dia Nacional dos Direitos Humanos com a Constituição porque é o princípio e a integração desses valores em Cabo Verde”.

A aprovação da Declaração Universal em 1948 constituiu a primeira etapa do processo da afirmação dos direitos humanos. A segunda só se completou em 1966, com a aprovação de dois pactos: um sobre direitos civis e políticos, e outro sobre direitos económicos, sociais e culturais. Todos os Estados que posteriormente se tornaram membros da ONU, como Cabo Verde, em 1975, automaticamente comprometeram-se a obedecer aos regulamentos. 

A independência de Cabo Verde representou para os cidadãos a materialização de um direito fundamental, o de soberania. A Constituição da República de 1980, consagrava o arquipélago como uma república soberana, democrática, laica, unitária, anticolonialista e anti-imperialista (CRCV, 1980, Art. 1º). A Constituição defendia ainda, que Cabo Verde era um Estado de democracia nacional revolucionária, fundada na unidade nacional e na efectiva participação popular, orientando-se para a construção de uma sociedade liberta da exploração do homem pelo homem (CRCV, 1980, Art.º 3). Isto era no papel, na prática, o regime de partido único violou constantemente o direito de liberdade de participação política. Aliás, o Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) era consagrado como a única força dirigente da sociedade civil e do Estado (CRCV, 1980, Art.º 4).

Com a abertura democrática e a vitória do Movimento para a Democracia (MpD), a 13 de Janeiro de 1991, com maioria qualificada, abre-se o caminho para a nova Constituição da República (de 1992), mais abrangente em relação aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e à concepção da dignidade da pessoa humana como valor absoluto e sobrepondo-se ao próprio Estado. A Constituição de 1992 passa a sustentar dois pilares fundamentais do Estado de Direito Democrático: primeiro, os direitos humanos e segundo, a soberania popular, indicando de forma aprofundada a relação intrínseca entre as instituições do Estado e os direitos humanos, apresentando um vasto conjunto de princípios como: o da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade e da autonomia individuais e da solidariedade.

“Se considerarmos, como os entendidos defendem, que sem Direitos Humanos, não há Constituição, mais do que “escudo de protecção”, diria que a Constituição justifica-se pela consagração dos Direitos Humanos que encerra”, sublinha ao Expresso das Ilhas Amílcar Spencer Lopes, presidente da Assembleia Nacional em 1992. “Estes são, por assim dizer, a sua própria razão de ser. É assim que, depois de consagrado no Preâmbulo, o princípio da dignidade humana como valor absoluto, logo no artigo primeiro, número um, a Constituição reafirma esse princípio, garantindo o respeito pela dignidade da pessoa humana e reconhecendo a inviolabilidade dos direitos humanos como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça. No artigo 15, n. 1, reitera que o Estado reconhece como invioláveis os direitos e liberdades consignados na Constituição e garante a sua protecção. E o artigo 18 vai ainda mais longe e estabelece que as normas constitucionais relativas aos direitos, liberdades e garantias vinculam todas as entidades públicas e privadas e são diretamente aplicáveis”.

“A nossa Constituição vincula-se aos direitos do homem”, refere o professor universitário Leão de Pina, “mas a Constituição de 92 marca o fim do ciclo de transição para a democracia, o fim do ciclo autoritário e o começo do novo ciclo, da democracia e de um regime que tem como norte, como orientações básicas o respeito pelos direitos humanos. Acho que acaba por ser feliz a coincidência das datas”. 

Nenhum documento alcançou tanta autoridade e repercussão política nos séculos XX e XXI como a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Emanada da organização, em princípio, representativa de todos os povos do mundo (a Organização das Nações Unidas), em 1948, dirige-se a todos os homens e mulheres. Para lá da igualdade, é a unidade do género humano que afirma. Baseada na ideia de que todos os seres humanos são “dotados de razão e de consciência”, tornou-se ponto de referência obrigatório de todos quantos lutam pela liberdade e pela fraternidade e o padrão por que se determina a natureza de cada regime ou sistema político.

Em Cabo Verde, primeiro sob o jugo salazarista e, depois da independência, oprimido pelo Partido Único, os direitos humanos foram ignorados, na prática, durante 44 anos. Quatro décadas de espera que fizeram mossa, sentida ainda hoje, nos atropelos que persistem no arquipélago. 

“Naturalmente”, sublinha a Ministra da Justiça, “quanto maior é a vivência e a sensibilidade que um país tem em relação aos direitos humanos, maior o nível de consolidação. É sempre importante fazer o exercício explicativo dos limites do poder do Estado, ao mesmo tempo que se sensibiliza sobre os direitos, para que se possa compreender que já não é autorizado, constitucionalmente, que determinados direitos sejam violados em detrimento de outros. A dignidade da pessoa humana está acima de tudo. Têm necessariamente a ver com uma prática que deve ser permanente, insistente e reiterada. É normal que haja tendência a desvios, o que não se pode aceitar é que esses desvios não sejam corrigidos, sob pena de que o que representou para nós uma grande conquista se perca”, diz Janine Lélis. 

“Provavelmente”, reforça Leão de Pina, “uma história de longa duração de atropelos, impregnou-nos com uma cultura, com um hábito de desrespeito pelos direitos humanos, sem que muitas vezes tivéssemos consciência disso. Não havia essa consciência, nem o entendimento que os direitos dos outros dependem das nossas atitudes, das nossas condutas e dos nossos deveres. O Estado tem um papel fundamental, mas não se pode falar dos direitos se não falarmos também dos deveres. Há que cultivar essa ideia que os direitos humanos dependem igualmente dos deveres de todos nós. Não obstante hoje termos, do ponto de vista formal, esse compromisso com os direitos humanos, as mudanças de mentalidade são mais lentas do que as mudanças jurídicas. É tempo de assumirmos uma cultura dos direitos humanos”, defende o académico. 

Amílcar Spencer Lopes tem uma análise diferente. “Não será, certamente, por só passarem a ser garantidos a partir de 1992, que ainda hoje se verificam atropelos aos direitos dos cidadãos. Eventuais atropelos haverá sempre. Há, no entanto, uma diferença quantitativa e qualitativa: os atropelos já não se verificam nem com a frequência nem a com a gravidade verificadas, no passado. Não se pode nem se deve, penso, generalizar, por outro lado, ocorrências verificadas com as forças policiais ou em estabelecimentos prisionais. Repare que também em democracias mais antigas e consideradas absolutamente consolidadas, tais ocorrências se verificam. O importante é que, quando tal acontece, sabemos todos e os cidadãos têm a garantia constitucional, de que os seus direitos serão restabelecidos e eventuais danos físicos ou morais ressarcidos”, salienta o antigo presidente da Assembleia Nacional.

Nascida para exorcizar os horrores da barbárie nazi e da II Guerra Mundial e para dizer “nunca mais” a provações semelhantes, há três traços que marcam o lugar singular da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O primeiro é a determinação em tornar obrigação internacional dos Estados o respeito dos direitos humanos, que até então tinham estado confinados ao plano constitucional nacional. O segundo traço é a vocação de universalidade dos direitos humanos, como decorrência de uma universal dignidade humana, deixando de ser privilégio dos cidadãos dos Estados que os tinham constitucionalmente assegurados. A terceira característica é a abrangência do elenco de direitos enunciados na Declaração, que abarca as várias “camadas” de direitos que se foram acumulando sucessivamente desde o século XVIII. Esta abrangência era tanto mais surpreendente, quanto era certo que, no plano constitucional interno, muitos dos países que aprovaram a Declaração se limitavam a garantir os direitos civis e políticos, sem qualquer referência aos direitos dos trabalhadores e aos direitos sociais. 

E se Cabo Verde tem desafios ainda a enfrentar, grande parte deles estão exactamente na questão dos direitos sociais. 

“Os Direitos Sociais, Eco­nó­micos e Culturais são, com­preensivelmente, de realização diferida e progressiva”, diz Amílcar Spencer Lopes ao Expresso das Ilhas, “o Estado não estará em condições de poder assegurá-los, no imediato e isso acontece por todo o lado. A realização desses direitos deve, no entanto, ser uma preocupação constante e um objectivo a atingir, em tempo breve. Para tal, há que haver ponderação na utilização e afectação dos recursos nacionais, por forma a corrigir assimetrias e promover a equidade, o que justifica, a meu ver, pactos de regime entre as forças políticas e sociais, de modo a garantir, a prazo, uma evolução económica e social positiva, equilibrada e sustentada, conducente à melhoria das condições de vida e ao desenvolvimento integral da pessoa humana. Atingir esse objectivo, é um desafio que demanda, a meu ver, o concurso e o envolvimento empenhado dos poderes públicos, do sector privado e da sociedade, no seu todo”.

“Eu acho que os poderes públicos têm de imprimir nas pessoas que tudo o que está ao alcance deles está a ser feito para materializar esses direitos”, refere a Ministra da Justiça. “Quase tudo é prioritário. Porque se a saúde é prioritária, a segurança é também prioritária e a educação é igualmente prioritária. Quando fazemos o exercício da concepção orçamental tomamos conheci­mento dos limites que temos para aquilo que são a execução das políticas por nós desenhadas. O mecanismo é identificar a prioridade das prioridades e ir fazendo na medida do que é a realidade macroeconómica do país. Seria maravilhoso termos todos os recursos que precisamos, mas isso é impossível, por isso penso que várias medidas que tem sido implementadas como a tarifa social para a energia e água, a questão do aumento das pensões, o subsídio de desemprego, o esforço para garantir melhores meios de diagnóstico nos hospitais e centros de saúde, a gratuitidade do ensino, são sinais claros que as questões sociais são essenciais e estão a merecer dos poderes públicos toda a atenção”, defende Janine Lélis. 

Leão de Pina realça que sem os direitos sociais não se consegue cumprir os direitos políticos. “Os direitos sociais têm a ver com a divisão social da riqueza”, diz o professor universitário. “Os direitos sociais têm um impacto fundamental na realização dos demais direitos, se uma pessoa tiver constrangimentos socioeconómicos muito fortes não vai exercer os direitos sociais e políticos da mesma maneira. Quando é que a pessoa, mesmo que tenha educação, poderá concorrer com alguém com uma educação numa universidade de elite? Se tem de trabalhar em três sítios, como consegue tempo para se reunir e criar um partido politico? A desigualdade social e económica interfere com o exercício dos nossos direitos sociais e políticos”. 

Sete décadas depois, são indesmentíveis os progressos na afirmação e defesa dos direitos humanos, mas o ideal de universalidade dos direitos humanos continua longe de ser alcançado, havendo países que continuam sem ratificar os principais instrumentos internacionais e muitos outros que, apesar de os terem ratificado, persistem em ignorá-los de forma mais ou menos sistemática. 

Somam-se também os desafios contemporâneos ligados à globalização, às guerras regionais e às migrações maciças, ao terrorismo internacional, aos movimentos nacionalistas e populistas, às crises financeiras e ao problema de sustentabilidade dos direitos sociais, à digitalização e às ameaças à dignidade e autodeterminação pessoal, etc. 

Mas, mesmo perante os reptos actuais, a Ministra da Justiça diz que devemos ser optimistas sobre o futuro dos Direitos Humanos. “Não há outra opção. Vemos realidades tristes noutras paragens, mas também vemos situações de amparo a serem criadas para combater essas realidades tristes. Tudo está à volta da dignidade humana”, conclui Janine Lélis.

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Autoria:Jorge Montezinho,28 set 2019 8:38

Editado pormaria Fortes  em  15 jun 2020 23:20

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