Só houve uma apropriação generalizada da CRCV depois da revisão de 2010

PorSara Almeida,28 set 2024 8:23

Simão Monteiro, ex-Ministro da Justiça
Simão Monteiro, ex-Ministro da Justiça

Celebrou-se no passado dia 25 de Setembro, 32º aniversário da Constituição da República de Cabo Verde (CRCV) e também o Dia Nacional dos Direitos Humanos. Uma data partilhada em torno de um princípio fundamental, o da dignidade humana, que serve de ponto de partida para uma conversa com Simão Monteiro, onde se abordam os desafios superados na aplicação da CRCV (nomeadamente a sua aceitação e apropriação na política), as relações e equilíbrios entre os diferentes poderes e entre estes e os cidadãos. Nesta entrevista, o jurista e ex-ministro da justiça esclarece também o que dita a CRCV sobre diferentes temas, e apresenta algumas sugestões de aspectos a ter em conta numa futura revisão. Seja como for, mesmo não havendo leis perfeitas, esta CRCV é “boa“ e tem cumprido o seu desígnio, avalia.

Costuma-se dizer que a Magna Carta está centrada na Dignidade Humana. Tem cumprido essa centralidade?

A nossa Constituição, de facto, no seu artigo 1.º , diz que a República de Cabo Verde se centra na dignidade da pessoa humana. Sem querermos ser dogmáticos, podemos resumir a dignidade da pessoa humana como uma qualidade que as pessoas têm, que lhes permite ser diferentes das coisas e dos animais. No fundo, é aquilo que permite ao Homem realizar-se plenamente, em termos da sua personalidade, ética e humanidade. A Constituição tem cumprido essa centralidade, dentro de certas condições políticas e socioeconómicas do país. E como é que podemos analisar isto? Primeiro, pela existência da própria Constituição, que vem afirmar este princípio logo no seu artigo 1º, lembrando a todos e todos os dias, que este princípio existe. Portanto, a afirmação constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana é importante. Segundo, a existência do princípio da dignidade da pessoa humana influencia e modela comportamentos dos poderes públicos, dos poderes privados e de cada um de nós. Terceiro, a existência da Constituição e do princípio da dignidade da pessoa humana cria a noção e a cultura sobre a própria dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos e, criando essa cultura, cria a necessidade do respeito. A cultura do respeito pela pessoa humana, depois, provoca reacções quando há violação ou tentativa de violação da dignidade da pessoa humana e dos direitos do Homem. Último aspecto: de alguma forma isto tem acontecido através das organizações da sociedade que são vocacionadas para a defesa dos direitos humanos, por via da comunicação social, por via dos tribunais… Resumidamente, podemos, então, dizer que essa centralidade existe: primeiro pela afirmação constitucional, depois pela modulação do comportamento e, finalmente, pela reacção e criação da cultura da defesa da dignidade da pessoa humana. Poderemos dizer que o cumprimento da centralidade ainda não é suficiente. Nunca é, porque as ameaças estão sempre presentes e a promoção e a defesa da dignidade da pessoa humana é uma luta diária, permanente. Portanto, nunca podemos dizer que o cumprimento é definitivo. No entanto, a maior força da Constituição e do princípio da dignidade da pessoa humana, e isto é que é importante, é a garantia do não retorno, ou seja, de perdermos a condição do ser humano.

Os cidadãos parecem, em certa medida, cientes dos seus direitos constitucionais. Mas há literacia constitucional? E todo o funcionamento, equilíbrio de poderes, etc.

Existe a literacia possível, que é preciso aprofundar. A Constituição, com o figurino do Estado de Direito Democrático é uma criação recente, de 1992. Inicialmente, nem sequer foi aceite por todos os actores políticos. Basta recordar as posições e as votações na Assembleia, a mensagem do então Presidente da República na altura da sua promulgação. Do meu ponto de vista, só depois da sua última revisão ordinária, em 2010, é que houve uma apropriação generalizada por parte dos actores políticos da nossa Constituição. Mas essa apropriação dos actores políticos é uma coisa, outra coisa é a cultura da Constituição pela sociedade. A literacia da sociedade foi muito mais perceptível com a presidência de Jorge Carlos Fonseca, quando, durante as suas campanhas e na prática da sua magistratura, referia que a Constituição era o seu caderno de encargos. A Constituição passou a ter mais visibilidade social e a ser evocada com mais frequência, o que contribuiu muito para a cultura da Constituição. Não quero dizer que só a partir da sua presidência isto aconteceu, mas foi aí que apareceu com mais receptividade. A literacia atingiu um outro patamar também com a instalação do Tribunal Constitucional.. Diria que é sobretudo com o comportamento do exercício do poder político pelos titulares dos cargos políticos e pela consciencialização da sociedade que podemos ver até que ponto há ou não literacia. No fundo, estamos a falar do exercício da cidadania, por um lado, e do exercício do poder político, por outro. Podemos dizer que existe, hoje, uma literacia razoável da Constituição, mas o caminho a percorrer ainda é longo e todos temos responsabilidade neste processo, cada um de nós nas nossas áreas, a começar pelas escolas e universidades

Quais foram os grandes desafios verificados na aplicação da Constituição?

O primeiro desafio foi criar a própria Constituição. Não foi fácil. Estamos a falar da Constituição de 1992, Cabo Verde teve outras constituições antes...

É uma nova Constituição ou uma revisão?

Não analiso a questão do ponto de vista formal. A Constituição de 1992 é uma nova Constituição, que assenta naquilo que é comummente aceite como princípios e valores da democracia moderna, o que não se poderia retirar das anteriores. Portanto, é uma Constituição com uma matriz completamente nova, rompe com todos os paradigmas das anteriores, exactamente porque traz o figurino do chamado Estado de Direito Democrático, no nosso caso até, podemos dizer, de cariz social. Dizia, o primeiro desafio foi criar a Constituição da República com o perfil que tem. O segundo desafio foi aceitar e apropriar-se da Constituição o que, como disse, não aconteceu logo. O terceiro foi a criação e instalação do Tribunal Constitucional, que fora criado na Constituição, mas só foi instalado anos depois [em 2015]. O figurino não foi pacífico. Muita gente defendia o Tribunal Constitucional dentro do Supremo Tribunal de Justiça, como aconteceu [até à sua instalação]. Hoje a instalação do Tribunal Constitucional é, sem dúvida, um desafio ganho. Outro desafio superado, nestes 32 anos da vigência, é que a nossa Constituição sempre soube garantir a estabilidade política.

Tem garantido a estabilidade política. Mas como pode proteger o sistema contra fenómenos como o populismo ou os extremos?

Os populismos não têm a ver com as Constituições. Os populismos são reacções que eu analiso como consequências do exercício do poder político. Portanto, muitas vezes o exercício do poder político traz insatisfações que podem gerar populismo.

No nosso sistema, como tem sido a aplicação da CRCV nos relacionamentos entre os poderes?

O nosso sistema político não é um sistema semipresidencialista, contrariamente ao que muitas pessoas dizem. Como está desenhado na CRCV, é o chamado sistema do parlamentarismo mitigado. No semipresidencialismo, o Presidente da República é eleito por sufrágio universal, directo e secreto, o governo é chefiado pelo Primeiro-Ministro, mas o governo é politicamente responsável perante o Parlamento e perante o Presidente da República. No caso cabo-verdiano, o sistema está desenhado de forma que o poder fundamental está centrado no Parlamento, mas é mitigado com outros princípios. O poder político centra-se, então, no Parlamento como órgão que representa a emanação da vontade popular e o governo, diferentemente do sistema semi-presidencialista, só responde politicamente perante o Parlamento. O governo não responde politicamente perante o Presidente da República. Este é um traço essencial na caracterização dos dois sistemas. O Presidente da República está concebido no nosso sistema como um árbitro, o garante da unidade da Nação, da independência e da integridade do território e o vigilante do cumprimento da Constituição. Daí que se costume dizer que o Presidente da República em Cabo Verde não governa e de facto não governa. Acontece que, tal como no semi-presidencialismo, o PR tem poderes muito fortes em relação à dissolução ou a demissão do Parlamento ou do Governo, mas em Cabo Verde, a dissolução da Assembleia, bem como a demissão do governo, taxada no artigo 202, n.º 2 da Constituição, só pode ocorrer, em princípio, quando houver crise institucional grave. Há outras situações de dissolução e de demissão, mas sem conexão directa com o exercício do poder presidencial. A dissolução do Parlamento, além de crise institucional grave, também só pode ocorrer se houver duas rejeições de moção de confiança ao governo ou aprovação de quatro moções de censura obrigadas, chamadas moções de censura construtivas… Resumidamente, é esse é o figurino do nosso sistema, e o sistema tem garantido a estabilidade política. Muitas vezes, as redes sociais ou a Comunicação Social dizem que há crise, há fricções no relacionamento entre o governo e o PR. Não posso dizer que há crise no relacionamento entre essas duas instituições só por aquilo que é veiculado. O que constato é que, desde 1992, a Constituição tem cumprido. Presumo que as relações entre os poderes, nomeadamente o governo e o Presidente da República são relações normais e temos que entender que em democracia as opiniões divergentes são normais, porque o Presidente da República, não podendo governar, tem opiniões políticas e tem o direito de as manifestar. Temos a tendência, às vezes, de extrapolar uma opinião políticadiferente da do governo para a existência de conflito de relacionamento. Eu não tenho essa leitura.

Cada Presidente tem a maneira de estar e o seu estilo.

Sim. O actual Presidente, por exemplo, diz que a magistratura de influência não tem limites. Obviamente, sabe que os limites são a própria Constituição e os poderes nela definidos. Eu interpretei essa afirmação que ele fez em tempos como uma forma de dizer que o Presidente da República tem condições para interpretar de forma criativa e elástica os poderes que a Constituição lhe dá. Portanto, isso reflecte-se no estilo com que cada Presidente da República tem exercido a comummente chamada magistratura de influência e, obviamente, que, sendo um Presidente que não governa, não é imune aos problemas nacionais. Tem poderes para, como tem acontecido com todos os Presidentes, chamar a atenção do governo e influenciar medidas que o governo pode tomar, o que está dentro do quadro constitucional. Creio que o sistema tem respondido bem até agora, a questão que fica é se nós, cabo-verdianos, queremos manter o sistema ou não. E isto é outra discussão.

Os vetos seriam uma forma, não de legislar mas de mostrar uma opinião presidencial.

Sim. O Presidente da República, em todos os sistemas, tem o poder de veto.

É limitado.

O poder de veto não pode ser exercido é duas vezes. Todos os presidentes da República têm exercido o seu direito de veto, que é um direito constitucional. Não podemos dizer que há conflito, ou que há problemas com o sistema só porque o Presidente da República exerce um direito constitucional, é um poder que ele tem. Pode-se é não concordar com os fundamentos do veto, mas isso também faz parte da democracia.

Tivemos esta situação recente de um pedido de reanálise. O Presidente pode retirar um veto que deu?

Não conheço situações em que o Presidente retira o veto. Isso não existe. O presidente da República tem o direito de veto e o diploma não existe se o presidente não promulgar. Ou seja, a falta de promulgação determina a inexistência do diploma. O que os Presidentes têm feito, muitas vezes, em relação a vários diplomas, é não vetar, mas devolver os diplomas com recomendações para correcções ou as adaptações que o Presidente entenda. O veto é a recusa da promulgação e o diploma “baixa”. Das duas uma, a entidade que faz o diploma ou aceita e reformula, ou não faz, pára o processo legislativo, e fica-se em situação de bloqueio. No caso do Parlamento, se a Assembleia voltar a aprovar o diploma, o Presidente é obrigado a promulgar, mas o último veto que se noticiou tem a ver com um diploma do Governo. Como se trata de matéria de competência legislativa concorrencial, tanto o Parlamento como o Governo podem legislar sobre essa matéria, os dois caminhos são possíveis. Não sei qual é o caminho que o Governo pretende...

Uma das áreas onde às vezes parece haver algum descompasso, falta de sintonia entre o PR e o governo, é na política externa. Como vê esta situação? Quem faz a política externa é o governo,mas quem dá a cara é o presidente. Há nebulosidades na CRCV?

Eu tenho sempre reservas em tirar conclusões por situações pontuais que podem não reflectir a realidade. Não tenho elementos para afirmar que há, ou que tem havido descompassos entre o Presidente da República e o Governo em matéria de Relações Externas. Analiso isso como posições políticas divergentes, em certas situações, mas o importante é saber quais são os poderes do Presidente da República e quais são os do governo em matéria de política externa. O artigo 136 da Constituição é claro sobre os poderes do Presidente da República: tem poderes em matéria de ratificação dos instrumentos jurídicos internacionais, tem o poder de declarar a guerra e fazer a paz, mas sobre proposta do Governo, ouvindo o Conselho de Estado e mediante a autorização da Assembleia – e isto é mais uma manifestação do parlamentarismo mitigado. Tem o poder de nomear embaixadores, também em articulação com o Governo, receber cartas credenciais, etc. Mas a nossa CRCV também é clara, no artigo 125, de que é o governo quem define, dirige, executa a política geral interna e externa do país. Significa que o Presidente da República não tem competência nesta matéria. Outra questão bem diferente é a representação externa da Nação. O Presidente da República, que é o mais alto magistrado da nação, tem poderes de representação externa da nação e a prática tem sido, com todos os presidentes e julgo que não é diferente agora, uma articulação prévia quando há missões externas de representação política. Se o Presidente da República for a um fórum internacional onde se discute a política internacional, normalmente, isso resulta do princípio da cooperação institucional que está na Constituição, que exige uma articulação prévia com o governo sobre o que vai dizer. A política é definida pelo governo e o Presidente da República, quando representa a Nação externamente, tem que levar a posição do governo. Não pode, do meu ponto de vista, ir ao fórum transmitir uma posição política que não se enquadre na política definida pelo governo, mas não tenho notícia que isso tenha ocorrido nas presidências que existem. Portanto, o Presidente da República tem legitimidade de poder representar a Nação, de se pronunciar e tomar posições sobre política externa em articulação com o governo O PR, ao representar o país, deve reflectir a posição oficial do governo, mesmo que pessoalmente discorde. Se num fórum de política externa não manifestar a política definida pelo governo, do meu ponto de vista, estaria em violação da CRCV, mas não tenho notícia de que isso tenha ocorrido nas presidências. No entanto, isto não o impede, de, a nível interno, manifestar o seu desacordo. O PR não tem de estar de acordo com a política do governo, nem interna, nem externa e pode, no exercício da sua magistratura manifestar a sua posição e isso é normal em democracia.

No nosso sistema, que como disse é parlamentarismo mitigado, o Parlamento é a estrela da Constituição. Como é que tem visto o desempenho deste poder, inclusive a nível de procedimentos?

O funcionamento do Parlamento pode ser visto de várias perspectivas. O Parlamento já teve vários regimentos e há questões e interpretações diferentes sobre a forma de os cumprir. Mas creio que o problema essencial não está no regimento, nos procedimentos. Analisando a questão do ponto de vista formal, o Parlamento vem funcionando de forma regular. Analisando do ponto de vista da sociedade, daquilo que é a minha percepção, a sociedade cabo-verdiana não tem gostado dos discursos políticos no Parlamento, porque as intervenções políticas não se têm centrado nas questões essenciais. Muitas vezes são muito fulanizadas, muito pessoalizadas, com um nível de intervenção que deixa muito a desejar. Então, acho que o principal problema do Parlamento neste momento é a mensagem, a cultura democrática que passa para a sociedade. A forma como os sujeitos parlamentares lidam entre si no Parlamento, a linguagem nem sempre apropriada, e nota-se, muitas vezes, que os deputados não trabalham a fundo as matérias para responder às questões ou para debaterem os assuntos com maior cientificidade, maior objectividade e sem entrar em respostas de natureza mais pessoal. Também, pessoalmente, vejo que se gasta mais tempo nas intervenções políticas do que em fazer leis. Evidentemente, alguém dir-me-á que o Parlamento é o centro do poder, é a casa da palavra; que a primazia deve ser dada aos debates, interpelações e períodos de antes da ordem do dia. Correcto, mas acho que pode haver um maior equilíbrio na repartição dos tempos dedicados aos debates políticos e os tempos da aprovação dos diplomas legais. Há muitos diplomas pendentes para aprovação, mas, se repararmos, todo o período de manhã durante uma sessão parlamentar é gasto em debates políticos e apenas a parte da tarde reservada à aprovação dos diplomas e de outros temas que têm a ver com a ordem do dia. Mas, de uma maneira geral, não se pode dizer que há crise. As instituições democráticas funcionam, o governo funciona, o Parlamento funciona. Há aspectos que podem ser revistos, o que é normal, faz parte do crescimento e da reforma do nosso sistema, mas acho que podemos dizer que, do ponto de vista daquilo que a função parlamentar, tem cumprido a sua função. Do ponto de vista do discurso e da imagem parlamentar, deve ser melhor.

Passando agora a outro poder, o poder local. Mais fragmentado, alegadamente o menos escrutinado e onde podem ocorrer violações à Constituição. Concorda? Qual a sua avaliação do funcionamento e dos mecanismos para evitar o abuso?

O poder local em Cabo Verde é também um desafio vencido dos 32 anos da Constituição e representa a montagem de uma componente essencial da construção do Estado de Direito democrático em Cabo Verde. É uma grande conquista, tem um bom percurso e chegamos a um patamar em que é preciso o debate. Portanto, falta vencer alguns desafios que são mais complexos de resolver e é preciso fazer o debate por aí. Não está vencido o desafio do financiamento e dificilmente estará num Estado com as condições de Cabo Verde. Quando falamos do financiamento, necessariamente estamos a falar do relacionamento dos municípios com o poder central. Cabo Verde conseguiu, pelo menos com a lei das finanças locais, em vigor, traçar um quadro minimamente objectivo do relacionamento financeiro. O diploma é bom, objectivo no que deve ser o relacionamento financeiro entre o Estado e os municípios.

Evidentemente, podemos dizer que é insuficiente, mas nunca há dinheiro suficiente para um país como Cabo Verde. Outra questão é o relacionamento político entre o governo e os municípios. A experiência dos 32 anos mostra que depende do governo que estiver no poder, mas, de uma maneira geral, classifico as relações como boas, embora tenhamos constatado, não neste último mandato, mas no passado, a crítica de muitos municípios sobre o tratamento e recursos dados. O importante agora é não se centrar no relacionamento que pode variar de mandato de mandato, de governo para governo. É saber se vamos manter o figurino e não se pode fazer, do meu ponto de vista, um debate da reforma do poder local sem falar da reforma do Estado e sem falar da regionalização. Não é só a descentralização...

Já tivemos essa discussão e não avançou. A regionalização não foi aprovada no Parlamento.

A questão é a seguinte: vamos manter o figurino do poder local? Se sim, vamos aprofundá-lo na vertical, porque ainda não chegamos ao nível das freguesias e do supramunicipal - chegamos ao nível das associações e não mais do que isso. O problema da descentralização coloca-se também ligado com a questão do aprofundamento do poder local e inframunicipal. Portanto, está em aberto se devemos aprofundar, chegar à descentralização por via do aprofundamento na vertical inframunicipal - chegar ao nível das freguesias e chegar mais perto das populações - ou se vamos por via da regionalização. No fundo, o que está em causa é colocar o poder mais próximo das pessoas e servir mais rápido e de melhor forma as pessoas. Na regionalização, há vários modelos e eu, pessoalmente, defendo a regionalização política: cada ilha é um governo. Isso, no meu ponto de vista, não implica uma reformatação do figurino dos municípios. No figurino que foi lançado [uma ilha, uma região], mantinham-se os municípios todos e ia-se ter regiões o que, quanto a mim, levaria a protagonismos políticos. Já tivemos figuras semelhantes, como o governador civil e vai haver protagonismos. Nós não temos recursos para esse modelo que foi lançado pelo Primeiro-ministro no seu primeiro mandato e que não passou. É um modelo custoso. Mas, por exemplo, se se tiver uma região política em Santiago, que tem nove municípios, com um governo regional, utilizam-se todas as estruturas municipais para ter delegações de um governo regional e continuar a servir as populações. E, todo o dinheiro que se usa para pagar aos titulares de cargos políticos nos 9 municípios chegaria para pagar bem aos membros do governo regional e Assembleia Regional, e sobrava dinheiro. Pode haver, como existem experiências em outros países, municípios ao mesmo tempo, em algumas ilhas, não em todas - por exemplo, no Maio ou municípios periféricos - e esses municípios podem estar integrados dentro de uma região política. Mas numa ilha tão grande como Santiago não faz sentido, do meu ponto de vista, numa região política, ter municípios. Seria a duplicação do poder. As nove estruturas que são as sedes dos municípios, seriam delegações de um governo regional, com arranjos que se podia fazer. Evidentemente, isto implica revisão constitucional. Esta é a minha opinião, alguns podem dizer que é um disparate, mas o importante é que temos que discutir. Voltar a pôr o assunto na mesa, obviamente não neste mandato, e pôr no quadro de revisão constitucional o debate sobre o figurino de municipalismo que temos, se serve, se vamos fazer uma mistura entre o municipalismo e o regionalismo por forma a encontrarmos uma solução economicamente viável e sustentável. Isto tem que ser discutido no quadro de reforma do Estado, de que se fala e que nunca se fez.

Já se justificaria essa reforma?

Acho que sim, para melhorar a eficácia e eficiência da governação do país em termos centrais e locais, e estar o mais próximo das pessoas para as servir, sem gastar muito em estruturas, porque, se não, o dinheiro fica só para as estruturas e não chega para aquilo que as pessoas precisam. É preciso discutir, o país precisa disso.

No poder local tivemos algumas … turbulências. Acha que tem havido violações da Constituição?

É difícil estar a dizer que houve violações de poder local, porque o poder local é um exercício governativo a nível local, tal como o poder central é um exercício governativo a

nível central. Não consigo tirar uma conclusão de que o poder local tem violado a Constituição Eu teria que saber o que é que se quer dizer com violação da Constituição. Se estamos a falar em termos de emprego, ninguém cumpriu. Cabo Verde nunca conseguiu o pleno emprego. Portanto, o direito ao emprego, ao trabalho,é um direito constitucional e o Estado de Cabo Verde não tem conseguido, quer a nível central, quer a nível local, em nenhum momento desde a sua independência, dar trabalho a todos. Por aí, podemos dizer, o direito ao trabalho é um direito constitucional por cumprir.

Mas por exemplo, incumprimento da auscultação e aprovação de orçamentos pela vereação, antes da remissão para a Assembleia Municipal…

O não cumprimento dos procedimentos de auscultação de um outro órgão não é em si uma violação da Constituição, é uma violação da lei, no caso o Estatuto dos Municípios. Portanto, é uma violação de uma lei infraconstitucional. As irregularidades ou as ilegalidades, podem ter existido em vários municípios, não só por procedimentos de natureza diversa. Essas podem ter existido, e as oposições nos municípios devem fazer o seu trabalho e usar o Ministério Público ou os mecanismos legais quando for necessário, para prevenir ou reprimir as violações que possam ter existido. Mas não se pode extrapolar e dizer queo poder local é um poder violador da Constituição. Não. Há, e sempre houve, em todos os municípios, mesmo a nível central, decisões que são apelidadas de violação de normas legais, e a fiscalização deve ser permanente. Uma das vantagens do Estado de Direito Democrático é a vigilância da violação das leis e que essas violações possam ser atacadas e reparadas por via dos tribunais. Mais do que criticar, os que têm legitimidade e poderes para, devem usar os poderes legais, ir para tribunal se necessário, para reprimir essas ilegalidades ou violações.

Outro poder, é a Justiça, que muitas vezes é considerada como um sector que viola os direitos dos cidadãos e a Constituição, nomeadamente pela morosidade.

É verdade que a morosidade é comumente aceita, quer pelos políticos, quer pela sociedade, como um problema nacional. Não é só nacional, é um problema que existe em pouco por todo mundo. Tem havido algumas medidas muito tímidas ou insuficientes para combater a morosidade, nomeadamente a estipulação no Código de Processo Civil de um prazo limite para haver as decisões, de no máximo 5 anos, mas isto vai levar o seu tempo para ser cumprido. A Constituição diz que todos temos direito a acesso à justiça de forma rápida e em tempo útil. Se colocarmos a questão dessa forma e se há morosidade, esse direito constitucional está a ser violado. Ora, a questão da morosidade tem a ver com o funcionamento dos tribunais e, portanto, de todos os intervenientes, o que inclui as partes, os advogados e os magistrados. Não se pode atribuir toda a culpa aos magistrados, pois há processos que se atrasam por falhas das partes e dos advogados. O problema deve ser analisado de forma mais ampla. E, sem se limitar à falta de meios, como dinheiro ou pessoal, frequentemente apontada como a causa do mau funcionamento dos tribunais. Não podemos pôr a culpa só nos meios, porque em Cabo Verde os meios nunca chegam para nenhuma instituição. Temos que aprender a acabar com a morosidade com os meios que o país pode dar. É possível reduzir a morosidade com os meios que o orçamento do Estado pode dar e, para isso, temos que melhorar outras coisas. Primeiro, é preciso fazer reformas legais. Foram feitas, não são suficientes, ver onde continuar. É preciso mudanças de comportamento dentro da própria magistratura, nomeadamente nos conselhos superiores, que têm que fiscalizar mais, avaliar mais, punir mais, se necessário, os magistrados, mas também os funcionários. É preciso que os advogados também cumpram a sua parte. Não fazer chicana processual, não travar o andamento dos processos. Temos um problema de acumulação de processos. Como vamos acabar com as pendências? Há várias soluções. Os conselhos dizem ter capacidade de acabar com as pendências, se tiverem mais meios. No entanto, é importante lembrar que Cabo Verde não tem sequer cem magistrados judiciais, nem do Ministério Público. A solução passa por formar mais magistrados através de uma escola de magistratura que garanta qualidade e quantidade. Mas também é preciso considerar a produtividade, que varia entre os magistrados. E não se pode exigir ao magistrado que produza, se ele não tem funcionários suficientes ou adequadamente preparados. Ou seja, há um conjunto vasto de questões que têm a ver com a morosidade que é preciso atacar e, muitas vezes, é difícil fazê-lo porque, de uma maneira geral, os políticos têm medo da justiça. Mas os políticos não deviam ter medo do poder judiciário. A Justiça é o maior garante da democracia. Mesmo com os problemas que tem, a justiça ainda é o que dá descanso mental e certeza às pessoas. É como dizia alguém: “não gostas da polícia, mas se fores atacado, é lá que vais fazer a queixa”. A justiça é a mesma coisa. A justiça é a garantia do Estado de Direito Democrático, por isso que não deve ser objecto de arremesso político. Mas, também não pode ser sacramentada, porque, ainda que não seja por via de eleição, exerce um poder do povo, que é administrar a justiça em nome do povo. Os políticos não devem ter medo, devem é identificar os problemas e encontrar as soluções. Existe um problema na morosidade, mas nunca vi no Parlamento propostas concretas para soluciona-lo. Para mantermos a normalidade e evitar a morosidade, temos que eliminar as pendência. Temos que atacar os processos que estão parados há anos… Portanto, acho que esta é uma questão que é preciso discutir na revisão da Constituição.

Nessa revisão constitucional, o que seria necessário?

Neste momento, podemos olhar para a Constituição e dizer o que é que funcionou e o que é que não funcionou. Por exemplo, o Conselho Económico Social e Ambiental, um dos órgãos auxiliares do poder político, ao lado do Conselho das Comunidades, não funcionou. Portanto, a revisão constitucional vai servir para ponderar se vamos manter esses órgãos auxiliares ou não. No Poder Judiciário, a morosidade não se resolve, na minha opinião, sem uma revisão constitucional. E temos que repensar o modelo de organização dos Conselhos Superiores. Quando se fala nisto, muita gente pensa logo na independência das magistraturas, dos juízes. Se há coisa que está a consolidada e onde há consenso, e eu fui magistrado, é essa independência dos magistrados e da justiça. É coisa sagrada e não está em discussão. O que é preciso ver é que os juízes e Ministério Público são independentes e autónomos é nos processos. Quando o juiz pega no seu processo para decidir, tem que ser livre. Também há independência no funcionamento e devemos manter a autonomia dos Conselhos, os seus orçamentos, a possibilidade de gerir os seus recursos. Mas, o modelo do Conselho que temos é um modelo limitado. Eu defendo um modelo do Conselho Superior de Magistratura bicamaral. Se, por exemplo, em um próximo ciclo eleitoral, a principal preocupação da nação for o tráfico de pessoas, e um candidato prometer acabar com esse crime, a população esperará resultados. No entanto, como primeiro-ministro não tem instrumentos para tal. Não pode dizer ao juiz que o faça, devido à separação de poderes e à independência judicial. Para alinhar expectativas e encontrar soluções, sugere-se a criação de um fórum, através de um Conselho Superior bicamaral. Um Conselho Superior onde tem assento a expressão política de Cabo Verde, onde podem estar representantes das CM, do governo, da PR, parlamento e também os magistrados, mas onde não se decidem processos. Aí decide-se apenas em que a justiça se deve focar, conforme as preocupações da sociedade.

E isso subiria depois à Câmara Superior.

Exactamente. Haverá uma outra Câmara que verificaria se os magistrados estão a seguir as prioridades definidas, sem interferir em casos específicos. A composição bicameral permite ter uma Câmara política, sem pôr em causa a independência dos magistrados, e outra Câmara classista, como existe agora, que se foque na avaliação de desempenho e inspecção da magistratura. O objectivo é combater a morosidade e melhorar a resposta da justiça.

Para terminar a parte da Justiça, referiu que o Tribunal Constitucional como um grande ganho. Se olharmos os acórdãos vemos que uma parte significativa tem a ver com pedidos de amparo, prisões preventivas que ultrapassam os tempos legais, enfim, com falhas no próprio procedimento da justiça nas instâncias anteriores. Como é que vê tanta falha?

Não são falhas da justiça. Quando uma pessoa faz uma queixa no tribunal só há duas soluções:

ou ganha o processo ou perde.

Ou prescreve.

Ou prescreve. Portanto, deixando a questão da prescrição de lado, quando o tribunal toma uma decisão, toma-a a favor de uma parte e contra a outra, parcial ou totalmente. As duas partes não podem ter razão ao mesmo tempo Isto é resolver o conflito, que é a função dos tribunais. É a realização da justiça. Quando a parte que perde interpõe recurso para a Relação ou para o Supremo, verifica-se o respeito pelo duplo grau da jurisdição. Ou seja, o sistema democrático permite que haja mais de um pronunciamento sobre um conflito. Havendo recurso, não quer dizer que haja problemas, é a justiça a funcionar. A diferença entre o Tribunal Constitucional e os tribunais comuns, chamados tribunais judiciais, é que a função destes é resolver conflitos. O Tribunal Constitucional não resolve conflitos: julga a constitucionalidade ou a legalidade. Portanto, se os tribunais, na sua decisão, violarem a Constituição, o Tribunal Constitucional está lá para corrigir. Mais uma vez, é a justiça a funcionar. A instalação do Tribunal Constitucional permitiu esses recursos de amparo, que vêm também mostrar a literacia constitucional a funcionar a nível da advocacia e da consciencialização das pessoas. É apropriação da Constituição num patamar de defesa dos direitos violados que não existiria sem a instalação do TC. Por isso foi um desafio ganho. Em termos de prisão preventiva, em concreto, é certo que há alguns casos que foram para o Tribunal Constitucional, mas não temos em Cabo Verde situações corriqueiras de excesso de prazo. São questões muito pontuais. Quando há a violação de um direito constitucional, o Tribunal Constitucional é obrigado a reparar o direito e isso pode levar à libertação da pessoa. Mas o grosso do recurso de amparo não tem a ver com a prisão preventiva. Resumindo, diria que o Tribunal Constitucional, foi um grande ganho para Cabo Verde e acho que já pouca gente defende a sua integração no Supremo Tribunal de Justiça. E acho que o Tribunal Constitucional fez um excelente trabalho, nesse primeiro mandato, com estes juízes. O mandato é único, de nove anos e os mandatos vão terminar este ano. O desafio é encontrar novos magistrados. Note-se que, dos juízes do Tribunal Constitucional actual, apenas o doutor João Pinto era magistrado, do Ministério Público. Os outros juízes, são grandes juristas, mas não foram magistrados e, dando aqui a minha opinião pessoal, deve-se evitar a magistraturalização do Tribunal Constitucional. Não digo que se deva fechar a porta a magistrados judiciais ou do Ministério Público, mas que não se caia na tentação de só ter magistrados de carreira no Tribunal Constitucional. Seria bom para o sistema, traz uma outra visão para dentro do Tribunal Constitucional, como tem sido até agora. Portanto, é o que se espera e que os próximos juízes continuem a realizar um trabalho de qualidade, como tem acontecido até agora.

Para terminar, falou da regionalização, da Justiça e outras questões pertinentes para um eventual revisão da constituição. Há 14 anos que não temos revisão. Já é tempo de o fazer?

O facto de não termos tido revisão significa que [a CRCV] é boa e tem respondido. Mas nenhuma lei é perfeita. Como disse, há aspectos que devem ser revisitados. Eu citei a questão do Poder Judicial, que deve ser discutida, especialmente no formato dos Conselhos, e a questão do Conselho de Economia Social e Ambiental, se deve ser extinto ou não, bem como o Conselho das Comunidades. Além disso, acho que temos que voltar a discutir a regionalização e o poder local na Constituição.

Mas própria sociedade mudou nestes 14, nomeadamente pelas novas tecnologias. Também terá implicações numa eventual revisão?

Não creio, porque as tecnologias têm a ver com o exercício dos direitos. A Constituição, nesta parte, tem o chamado princípio do Habeas Data, que permite ao cidadãodefender-se face às tecnologias. É um aspecto que já está regulado na Constituição, pode ser aprofundado, mas não creio que seja um aspecto essencial. Evidentemente, há outros aspectos que as pessoas podem indicar, esta é a minha sensibilidade, e acho que a Constituição, de maneira geral, é boa.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1191 de 25 de Setembro de 2024. 

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Autoria:Sara Almeida,28 set 2024 8:23

Editado porJorge Montezinho  em  25 dez 2024 23:28

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